[Treinamento] Memórias

Enquanto caminhava por entre as ruelas de Martis em busca de alguma coisa interessante para fazer, me deparei com um mendigo faminto, o mesmo batia duas pedras tentando criar faísca para incendiar uma fogueira, um pássaro morto estava ao seu lado. Provavelmente não havia o caçado, e sim dado a sorte de encontrar a carcaça do animal já abatido ali, ao me olhar se espantou, um misto de susto por minha aparência com medo de perder seu alimento, mas logo percebeu que não se tratava de um pé rapado como ele e perdeu um de seus temores. — Yo. — Estiquei meu dedo indicador da mão esquerda, lançando uma pequena chama azulada com o centro negro, a mesma rapidamente começou a consumir a madeira, o desgraçado sequer para agradecer, apenas se manteve quieto e esticou o corpo do pássaro acima do fogo com um pedaço de madeira. "Serve-lhe de lição, um lixo imundo sobrevivendo por sorte ainda me despreza com o olhar, e sequer se dá a dignidade de agradecer."

Meu pensamentos vinham do fato de que as chamas negras ao entrar em contato com o pássaro, mesmo que por um deslize dele, começariam a queimar a carcaça sem parar, e se ele estivesse faminto o suficiente tentaria apagar as chamas com as próprias mãos, resultando em seu fim precoce. Talvez eu tivesse lhe feito um favor, considerando o estado que vivia, não iria muito longe, a morte era um presente que eu não cobrava para dar, mas bem, ficava nas mãos dele, literalmente, seu destino. Se fosse um bom cozinheiro, certamente sairia ileso daquele jantar. Contudo a visão de um morador de rua trouxe a tona certas memórias de meu passado, e enquanto passava por becos escuros sem prestar atenção aos meus arredores, começava a me lembrar de minha tortuosa infância. A imagem dos corpos queimados e desconfigurados, os sons de grito de desespero, o cheiro de carne queimada que me perseguia, as pessoas que senti afeto sendo queimadas vivas, uma por uma. Parei por um instante, levando a mão até a cabeça e tentando segurar a barra, respirei fundo enquanto meu coração acelerava, surtos como esses eram comuns antigamente, porém cada vez mais eu aprendia a controlar essa fraqueza imbecil que se manifestava, o tempo era um ótimo tutor, e aprender na marra ensinava cada vez mais como sentimentos só atrapalhavam o desenvolvimento.

Continuei minha caminhada, indo até uma casa abandonada e invadindo a mesma, não havia nenhum pé rapado lá para me entreter com ameaças vazias para não tocar em suas poções alucinógenas, sentei-me num canto como um drogado com os joelhos altos, escorando os braços acima deles e olhando para a parede em frente a escuridão, meu passado era um divergente de águas, o pouco que me mantinha são com a expectativa de encontrar outra pessoa para proteger, amar. Porém minhas atitudes há muito tempo deixaram de atrair pessoas, e minha aparência não contribuía em nada para alguém me tolerar, fazendo-me cada vez mais ir longe da civilização, ao menos como um membro bem visto nela. Não sentia muito falta disso, sozinho eu pensava mais, agia melhor, fazia mais, entretanto alguém ao meu lado seria interessante, talvez até duas pessoas, quartetos costumam trazer azar. No fundo não queria admitir, mas sentia falta de me interessar por algo além de mim, ter uma perspectiva diferente, mesmo que irrelevante e ignorada logo em seguida.

Me ergui após refletir, saindo de lá um pouco mais determinado, ou apagaria de vez aquele passado inútil e sem razão em minha nova vida, ou conseguiria mudar um pouco para trazer parte dele atona e com utilidade, nem que fosse para o queimar depois de comprovar sua inutilidade, meus olhos carregavam mais determinação, e sem qualquer pudor ou medo de ferir os demais, transmitiam um pouco da insanidade que passava por minha cabeça, sentia minha postura mais relaxada e aberta, sabendo que por bem ou mal, superaria até mesmo o tempo. Um teste se provava logo adiante, o brilho do luar penetrando as nuvens espessas que pairavam na cidade iluminavam finalmente o meu entretenimento, uma bela jovem que andava sozinha após seu expediente de trabalho, as pessoas geralmente me temem pela aparência, mas não chegam a perder as estribeiras por isso, nunca havia tentado o fazer. E se eu usasse minha aparência como vantagem? Aproximando-me dela, deixei meus olhos brilharam com um azulado, a magia que corria por meu corpo fazia as chamas darem enfoque em meu rosto, a ponta de meus dedos começavam a clarear numa tonalidade azulada quando eu as aproximava de meu rosto, deixando evidente tanto minha face marcada quanto o sorriso doentio que eu esboçava para ela, não posso afirmar ao certo, porém pelo brilho do luar eu tive a impressão que as calças dela estavam molhadas enquanto corria para segurança, comecei a gargalhar sozinho com a a ideia de uma mulher feita se mijar nas calças por medo, as chamas rapidamente sumiam enquanto eu continuava meu trajeto, agora de bom humor. Precisava de uma boa noite de sono, e então veríamos o que o dia de amanhã me esperava.